O bule de loiça
não cheira mas
tem uma flor à superfície
e duas faixas azuis.
Ficou lá na casa dele
num armário atrás do vidro
vazio à espera
sem se incomodar
com a ausência de chá
e biscoitos
ou leite a ferver.
Eu não sou
um bule e
cheira-me a outono na rua.
28 de setembro de 2024
O bule
25 de setembro de 2024
Duna noturna
O feitio da noite desperta
o lado reverso
da razão
mas exige também solidão
antes de permitir
descer a pique
pelas vertentes das pirâmides do Egito
sobre um par de skis
num ocaso vermelho de velocidade
Ssssss
deslizo até...
ao fofo da duna.
Tamanha experiência
requer extinguir a luz
que cega
ao enrolar na areia
como o mar.
O feiti(ç)o é esse.
18 de setembro de 2024
Roleta russa
A oração anterior veio cedo de mais e não teve efeito. Já ontem e depois hoje as ondas laranja subiram pela capa negra e chegaram novamente à boca da noite. O vermelho fulvo e os cinzas, entremeados, reforçaram as sombras do dia. Tudo é fosco, sempre fosco, de dia. Tudo é aceso e contrastado em noites destas.
O mundo é iridescente e elétrico e acorda uma vigília ansiosa que só é conhecida por quem repete, ano após ano, o mesmo susto ou a mesma desgraça através de ábacos intermináveis. Ano após ano a contar as desgraças, a superar as desgraças, a evitar as desgraças, a contornar as desgraças, a temer as desgraças. As mesmas desgraças anunciadas anualmente. Só que não batem sempre à mesma porta. As portas mudam-se e as portas repetem-se. Os matos mudam-se e os matos repetem-se.
Qual vai ser a roleta russa do ano? De onde vem disparada a flecha vermelha que vai cortar o ar? A mim, aos meus, o vento cai-me este ano no negro ou no vermelho?
"Não quero jogar" sussurro aos deuses. E peço antes o verde e o ar claro. Quero respirá-lo, inalá-lo a reter a beleza e a afastar o temor.
Faço as persignações e as rezas que fazem todos os que se sabem expectantes do movimento da roleta que gira e gira e gira e às vezes pára e acerta num sítio qualquer. "Que não seja o meu, o dos meus, pelo menos". Mesmo que se tenha feito o trabalho de casa e limpo as matas, se a chama vier forte será o que for. Até que os vários elementos da natureza decidam amainar-se. Morrem menos, renascem melhor, mas ardem na mesma, os verdes.
Contraio-me, a pedir mais uma escusa, enquanto a roleta gira os pontos cardeais do vento. Contraio-me nestas datas todos os anos do que parecem ser eras inteiras de inevitabilidade (que não acredito que seja mas que não creio ser possível mudar só individualmente, o problema é de fundo e é coletivo, é de território, é de ocupação, é de gestão de vários aspetos).
E todos os anos chega o fumo a acordar os traumas, ou a acender as tramas dos complôs de cafés mais ou menos bebidos, mais ou menos parciais. Depois, depois há uns quantos que "chateiam" com isto todo o ano, mas no geral assobia-se para o lado e espera-se que o clima resolva no ano seguinte.
Pois sim...
A floresta arde-nos o país mais uma vez, mas esse é um dos poucos sujeitos de frase que nada pode fazer a este respeito, tal como o vento ou o verão. Adaptamo-nos ou não? E a quê?
9 de setembro de 2024
Ardor de verão
A pele macia e dourada
do sol de verão
rasgou-se nos joelhos
e nas palmas das mãos
de encontro às pedras
e ao pó do chão.
É habito que esta estação
nos deixe a arder à superfície
mas este ano tem sido exceção.
Sinto o ardor e então
sorrio grata
ajoelhada na cova furtiva
ali desejo que esta metáfora
finde a anual tradição.
Já foi cumprida.
Destaques
O que é que achas?
O que é que achas? O que queres que te responda? Qual é a tua opinião? Acho que raras vezes alguém quer opiniões de facto. E se me sai...