28 de outubro de 2024

Nevão

Neva na Serra e
ninguém disso duvida
mas daqui do sopé
já ninguém a vê
e daqui do sopé 
já ninguém 
lá vai.

Sumiu uma Serra 
na magia branca 
apagou-se translúcida 
entre os lábios dos céus
e só a fé afirma
que regressará.

A Serra escondeu-se 
mas o Serrano sabe
que assim deve deixá-la.
O amor das alturas a devolverá 
mantilhada a cristais
e penugens de anjo
o saldo natural do celeste beijo
e virá prenhe de frio 
e de regozijo.

Beija-nos a Serra 
um tremor nublado.
Ninguém disso duvida
mas já ninguém a vê 
nem alguém a subirá 
porque a brancura é pura

mas o nevão é privado.

28 de setembro de 2024

O bule

O bule de loiça 
não cheira mas
tem uma flor à superfície 
e duas faixas azuis.
Ficou lá na casa dele
num armário atrás do vidro
vazio à espera
sem se incomodar
com a ausência de chá 
e biscoitos
ou leite a ferver.
Eu não sou 
um bule e
cheira-me a outono na rua.

25 de setembro de 2024

Duna noturna

O feitio da noite desperta
o lado reverso 
da razão 
mas exige também solidão 
antes de permitir 
descer a pique
pelas vertentes das pirâmides do Egito 
sobre um par de skis
num ocaso vermelho de velocidade
Ssssss
deslizo até... 
ao fofo da duna.
Tamanha experiência
requer extinguir a luz 
que cega 
ao enrolar na areia 
como o mar.
O feiti(ç)o é esse.

18 de setembro de 2024

Roleta russa

A oração anterior veio cedo de mais e não teve efeito. Já ontem e depois hoje as ondas laranja subiram pela capa negra e chegaram novamente à boca da noite. O vermelho fulvo e os cinzas, entremeados, reforçaram as sombras do dia. Tudo é fosco, sempre fosco, de dia. Tudo é aceso e contrastado em noites destas.

O mundo é iridescente e elétrico e acorda uma vigília ansiosa que só é conhecida por quem repete, ano após ano, o mesmo susto ou a mesma desgraça através de ábacos intermináveis. Ano após ano a contar as desgraças, a superar as desgraças, a evitar as desgraças, a contornar as desgraças, a temer as desgraças. As mesmas desgraças anunciadas anualmente. Só que não batem sempre à mesma porta. As portas mudam-se e as portas repetem-se. Os matos mudam-se e os matos repetem-se. 

Qual vai ser a roleta russa do ano? De onde vem disparada a flecha vermelha que vai cortar o ar? A mim, aos meus, o vento cai-me este ano no negro ou no vermelho? 

"Não quero jogar" sussurro aos deuses. E peço antes o verde e o ar claro. Quero respirá-lo, inalá-lo a reter a beleza e a afastar o temor. 

Faço as persignações e as rezas que fazem todos os que se sabem expectantes do movimento da roleta que gira e gira e gira e às vezes pára e acerta num sítio qualquer. "Que não seja o meu, o dos meus, pelo menos". Mesmo que se tenha feito o trabalho de casa e limpo as matas, se a chama vier forte será o que for. Até que os vários elementos da natureza decidam amainar-se. Morrem menos, renascem melhor, mas ardem na mesma, os verdes. 

Contraio-me, a pedir mais uma escusa, enquanto a roleta gira os pontos cardeais do vento. Contraio-me nestas datas todos os anos do que parecem ser eras inteiras de inevitabilidade (que não acredito que seja mas que não creio ser possível mudar só individualmente, o problema é de fundo e é coletivo, é de território, é de ocupação, é de gestão de vários aspetos).

E todos os anos chega o fumo a acordar os traumas, ou a acender as tramas dos complôs de cafés mais ou menos bebidos, mais ou menos parciais. Depois, depois há uns quantos que "chateiam" com isto todo o ano, mas no geral assobia-se para o lado e espera-se que o clima resolva no ano seguinte.

Pois sim...

A floresta arde-nos o país mais uma vez, mas esse é um dos poucos sujeitos de frase que nada pode fazer a este respeito, tal como o vento ou o verão. Adaptamo-nos ou não? E a quê?

9 de setembro de 2024

Ardor de verão

A pele macia e dourada 
do sol de verão 
rasgou-se nos joelhos
e nas palmas das mãos 
de encontro às pedras 
e ao pó do chão.

É habito que esta estação 
nos deixe a arder à superfície
mas este ano tem sido exceção.

Sinto o ardor e então 
sorrio grata 
ajoelhada na cova furtiva
ali desejo que esta metáfora 
finde a anual tradição.
Já foi cumprida.

17 de agosto de 2024

Bella vulgaria

A vespa gigante infiltrou a casa
saída da noite a escutar a luz
elétrica atacou as paredes
brancas 
a batuques nos estuques
de esbaforir quaisquer gentes
Apaga a luz, abaixa-te aí!
Acende a da rua, a ver se ela sai!
Bréu sonoro por segundos

mas zumbe um bizarro banzé 
O que é isto? 
O que é que é?
Com as asas embaraçadas
a vespa espetou-se na teia do beirado 
e agora esperneia
aterrorizada depois de aterrar
Para ela acorre uma aranha
a seda soou ao jantar e
os oito olhos luzem de sanha 
ao vir com zelo reforçar a cadeia
por onde a vespa rabeia
não se vai deixar roubar
Quem achas que vai ganhar?
A aranha fia 
para ver se a enleia
e se com as queliceras a estonteia
mas a vespa inteira retorce e guerreia
e de ferrão erguido torneia e golpeia
Vê a vida por um fio 
e teme a ironia desse epitáfio.
Coitada da vespa! Já foi!
A aranha insiste 
tenta picar e fia mas
a vespa estrebucha com resiliência 
e tanta força faz 
que a aranha se afasta
libertando o fôlego da contorcionista
para romper a cadeia
e reaver a esperança
levando consigo as presas da teia 
A vespa escapou!  Protejam-se! 
Parece furiosa 
mas estampa a beleza
cruel e ardilosa 
da natureza




9 de agosto de 2024

Insónia

A hora certa de dormir
passou sem que a agarrasse 
e a mente deixou-me à espera 

do regaço da inconsciência
a ir 
e vir 
de cansaço
de corpo alerta 
e sem paciência.
Está calor frio entre os lençóis 
adesivos 
aos tempos contados
e enrodilhados nos dedos  
dos pensamentos suados
e dos gestos atrapalhados.
Levanto, como, deito
conto carneiros e canto
Contorço, deito 
levanto
livro fechado, 
livro aberto,
água fria e depois
chá quente
quase 

Que nervos, de novo desperto! 
Tudo geme nesta teimosia
da vigília a bruxulear
força ausente e em demasia
que não se deixa aquietar.

Foi tolice 
deixar fugir a hora
e dormente fico a pensar
que a IA, sendo um prodígio
libertador do esforço humano,
bem podia inventar um relógio
para agarrar as horas do dia
e sempre que a certa passasse
a apanhasse e reservasse
para quando 
me conviesse.
 
Amanhã 
quando 
acordar 
vou
...

30 de julho de 2024

Clickbait

Fait divers à Paris et Click... Bait... 

Seis Nadadores abandonam a aldeia olímpica! e vão para um hotel mais perto da piscina. 

Por Poseidon, é escandaloso!

Nem vais acreditar no que ele andou a fazer! Que infame é a vida de V e Z, famosos que "fazem" sexo, mentiras e vídeos, como se fossem mortais. O sexo é que tem de ser de cartão e só depois da Prova, já que a Organização dos Jogos Olímpicos pede desculpa pelo quadro "A Última Ceia". Essa que nunca o foi mas se revelou indigesta aos estômagos de monoteísmos rivais, esquecidos da História plural do Olimpo.

Ah o gume de Apolo tragou Maria Antonieta, qual Medusa, sem menção às barbas de São João Batista deixadas em outros livros. Que herético Metal!

Entretanto, sob os Céus dos divos, às vezes também se fala de atletas, sobretudo os que surgem em Fotos em calções de banho e são alvo de atenção, enquanto os iscos pescam cliques de canas eretas nas páginas web e eu me contorço na linha do riso com o Click...(Bait ou Fake?) e reações apressadas.

Arqueio os dentes ao anzol que me reflete neste texto em fuga e fluo na corrente viva da sanidade, junto a Sequana, sem disposição para ser almoçada em festins de audiências. Que Afrodite e Dionísio nos livrem do clickbait, da batota do pensamento único e sobretudo dos públicos púdicos.


28 de julho de 2024

Lápis e tintas na Casa da Cerca, Almada

 

Casa da Cerca, Almada

Regressos aos lápis e tintas, a um passatempo perdido nas juventudes. Por isso têm este ar ingénuo, sem técnica, mas talvez por isso também sabe tãaao bem 😉😁

27 de julho de 2024

Exprimir o inexprimível

Um obscuro inexprimível
interpela-me 
Estico-me e torço-me
ele assoma e retrai-se 
abandono-o 
e ele
espelha
além a imensidão
Volto a fuçar, a esbracejar,
as unhas agudas esgravatam o algo
mas a língua enrola e a mente cola
quando ele corresponde a si
intocável 
Deixa-me só intuir 
que talvez seja múltiplo
como a funda vertigem
da luz estrelada à noite na Serra
Aceito em silêncio 

15.07.24 

18 de julho de 2024

Nápoles e a coleção de Maradonas (1 de 3)

 

Viagem a Nápoles

A intensidade da viagem na Páscoa e depois o regresso ao trabalho intenso no início de abril não deu tempo para a síntese. Hoje houve tempo e vontade de organizar e guardar aqui uma memória da viagem com a Joana e o Edward. Vai ser em conjuntos, Nápoles, Pompeia, Herculano e o Vesúvio.

La Bella Napoli tem paisagens, edifícios, castelos, palácios, subterrâneos, igrejas (sobressai o Barroco), gastronomia e ruas animadas que são fantásticos mas depois também surpreende em vários pormenores e simbolos.

Fomos em altura de festas da Madonna dell'Arco e na primeira noite a cantoria era tal que parecia estar dentro de casa. Claro que saí à rua e deu para ver algumas das festas organizadas pelas coletividades locais, com andores e jovens porta estandartes que faziam acrobacias, enquanto outros batucavam, tocavam e cantavam. 

A História da Madonna del Arco conta que em 1540, na 2ª-feira de Páscoa, um jovem fica irritado por ter perdido um jogo (pallo-malo, pareceu-me ser uma espécie de croquet), chama nomes à Madonna e atira-lhe a bola à cara. A imagem começa a sangrar e a multidão grita que é milagre. Perseguem o rapaz, que é levado à justiça e condenado à morte. Quando vão enforcá-lo numa tília, a árvore murcha e a multidão percebe que ele deve ser perdoado. A história continua a instigar grandes festas numa cidade que me pareceu muito devota e fervorosa. Outro exemplo disso é a quantidade incrível de oratórios e ex-votos que existem nas ruas das áreas mais antigas.

Por isso um dos passatempos desta viagem foi colecionar fotos de oratórios (há por todo o lado e nos sítios mais estranhos). Mas aquilo que mais me surpreendeu foram as efígies do Diego Maradona também espalhadas por tudo o que é sítio e pormenor. Aqui fica uma parte da minha coleção (que é maior). Foi um passatempo curioso catar Maradonas 🤪 em Nápoles.


Viagem a Nápoles graffiti de Maradona

Pompeia (2 de 3)

 

Visita a Pompeia, espetacular

No trajeto de Nápoles a Pompeia, falávamos dos bilhetes e comentava eu que visitas de 3 dias a um só sítio arqueologico me pareciam excessivas. Um dia parecia-me mais que suficiente. Pompeia não seria Roma 😅 eheheh... Três dias? Que disparate!

Nunca tinha ido a Pompeia (mas sim a Roma que na altura me impressionou) e estou mais habituada à escala dos Romanos em Portugal (pois sim, eheheh). Mas já tinha estudado  a Cidade, já tinha até ensinado Pompeia aos alunos. Vi e mostrei fotografias e videos, explorei com eles a página web do Museu e as visitas virtuais. Conhecia notícias das descobertas mais recentes e até promovi uma atividade inspirada em Pompeia em que os alunos fizeram maquetes de cidades romanas para articular com os vulcões que tinham de fazer em Ciências Naturais. Em suma, achava que sabia umas coisinhas 😅. Três dias? Foi a arrogância da ingénua, ou da ignorante, que vai dar no mesmo 😅

É incrível, aquilo que lá está é muito maior e mais especial do que imaginava e estou muito grata por ter ido lá  🥰. Claro que um dia não foi suficiente, nem de perto, para toda curiosidade e entusiasmo, para todos os detalhes da vida comum que se multiplicavam a cada rua, a cada construção. Mas esforçámo-nos por ver o mais possível das coisas que cada um queria e sabia e teve energia de conseguir. Andámos até em busca das novas descobertas, lidas nas notícias, mas afinal ainda estão em área reservada, não aberta ao público. Claro que não vimos nem metade da Cidade e que com os novos trabalhos em breve haverá mais para ver.

Pompeia é um sítio fabuloso que aconselho a toda a gente...  e espero que o texto reflita o quanto me senti pequena perante a História que ali se nos revela e sobre a Humanidade e o Saber Científico sobre ela. Senti-me pequena mas viva e cheia de curiosidade, renovada criança. Faz bem sentir essas coisas, relativizam-nos, reposicionam-nos.

Claro que foi muito difícil escolher fotografias para Pompeia. Fiz dois conjuntos e falta imensa coisa 😉 mas é a síntese conseguida por esta stora-arqueóloga-miúda. Aqui fica a minha síntese de memoria de uma das grandes cidades memória que ainda podemos contemplar.

Visita a Pompeia, espetacular


Herculano e o Vesúvio (3 de 3)

 

Visita a Herculano e ao Vesúvio

Em Herculano (Ercolano) além de toda a História e estórias (dos pormenores do barco ou das pessoas que fugiram para a praia) dos frescos e mosaicos, dos metais, das estátuas, dos edifícios, aqui impressionaram-me as madeiras preservadas... Madeiras... nas portas em caibros em escadas... Madeiras trabalhadas, com detalhes 😮. Espetacular 😍.

A dimensão original e a área escavada são muito mais pequenas do que em Pompeia e quando fomos já tínhamos ficado maravilhados com essa imponência, mas Herculano conquista da mesma forma com os seus pormenores de vidas e espaços humanos interrompidos e parados no tempo. 

Depois das visitas às cidades... Era preciso ir conhecer o portento visível de toda a parte. A subida ao Vesúvio é tão enorme que só aqui cabem partes do topo da cratera 🤪

Cratera do Vesúvio

Cratera do Vesúvio


Destaques

Nevão

Neva na Serra e ninguém disso duvida mas daqui do sopé já ninguém a vê e daqui do sopé  já ninguém  lá vai. Sumiu uma Serra  na magia branca...